O mundo sem ela

O maestro — tomado pelo frenesi que lhe é peculiar — leva a orquestra para as ruas, para um ensaio. Alguns músicos e os dirigentes da orquestra ficam furiosos. Onde já se viu sair de uma sala de acústica perfeita para ensaiar em um estacionamento, ou espaço afim, no meio da cidade e seus barulhos, as buzinas, o falatório, os passos das pessoas rumo ao trabalho? Expostos à curiosidade dos comuns?

Mozart in The Jungle
O produtor sofre com a demanda musical de sua gravadora. A música que antes lhe fascinava, e os artistas com os quais tinha prazer em trabalhar, resumem-se agora a pessoas que caibam em um modelo de sucesso. Ele sabe que retorno comercial é necessário, afinal, todos têm de ganhar a vida. Mas por que não um retorno comercial com boa música? Ele encontra essa compositora e decide que irá produzir o disco dela. Sem a parceria com a gravadora — da qual foi convidado a se retirar pelo seu sócio —, ele vai para as ruas. Grava todas as faixas do disco nas ruas, aproveitando os barulhos da cidade e de seus personagens.

Mesmo Se Nada Der Certo (Begin Again)
Ela queria ser a primeira pianista clássica negra da História. O talento estava lá, a dedicação, idem. Porém, na sua época o preconceito racial não era assim, possível de ser comentado. Não vamos nos enganar, que ele ainda existe e tem força, ainda é bem complicado comentar a respeito, apesar de termos mais liberdade nesse quesito, o que é bem triste ao nos voltarmos ao que muitas pessoas arriscaram e continuam a arriscar — sim, falo da vida delas — para melhorar esse cenário. Ela não se tornou a primeira pianista clássica da História, mas certamente uma das artistas mais importantes dela. Mas a vida pode tirar a pessoa do prumo, não? Mesmo com boas intenções, com a batalha certa a ser encarada, a intimidade com seus demônios traçou outro plano, enquanto o público se encantava com sua música.

Nina Simone
Toda vez que reflito sobre a importância da arte — e eu o faço com frequência, já que, com a mesma frequência encontro quem afirme que é somente entretenimento, então vamos mantê-la consumível, ainda que descartável —, imagino o mundo sem ela. Você consegue?

Vamos nos ater à música, que é o assunto em pauta. Você consegue imaginar um mundo como um longo filme sem trilha sonora? Sem canções de ninar? Sem canções religiosas? Ah, mas sem essas também... Nada de Eleanor Rigby, Insensatez, Stairway to Heaven ou Roda Viva. Sem os musicais, claro. Sem serenata, roda de violão, festivais.

Conheço muitos artistas que dizem que não vieram ao mundo para influenciar a opinião de ninguém, que fazem arte por vários motivos, menos com a intenção de mudar o mundo. Talvez por isso o façam tão graciosamente. Obviamente, seria ótimo se esses artistas, os que têm algo a dizer, tivessem mais espaço na realidade das pessoas; que fosse possível que suas obras chegassem ao grande público com a facilidade — apesar da dificuldade — com a qual um maestro leva músicos e instrumentos para as ruas, e um produtor musical grava canções pela cidade.

Você pode até dizer que estou delirando, afinal, o maestro e o produtor são personagens de série de televisão e cinema. Mas e a pianista? Ela não é personagem. Apesar de ter se tornado uma pessoa difícil de lidar e que, às vezes, tinha ideias radicais, ideias que avançavam enquanto ela lidava com transtorno mental, antes mesmo de doenças como a que tinha fossem diagnosticadas normalmente. Era bipolar, daí veio muito do seu comportamento errático. Arriscou uma carreira de sucesso para cantar sobre direitos civis, falando sobre o orgulho de ser negra em um momento em que sê-lo era muito mais difícil e complicado do que é hoje em dia. Imagine sê-lo com orgulho.

Arte também requer coragem de se expor como a maioria de nós jamais se exporia

Não há como passarmos pela vida sem que a arte nos toque de alguma forma. Quem sabe se, ao ampliarmos o seu alcance, possamos usufruir todos os seus matizes. E trazê-la para a rua como experimentação. Trazê-la sem mutilá-la para que caiba em projetos formatados. Trazê-la na grandiosidade que lhe cabe. Trazê-la para falar sobre tudo, sem censura, mas definitivamente celebrando a liberdade e o respeito pela criação e opinião do outro.

Para que, muito além do prazer que a arte pode nos oferecer, não nos tornemos um mundo mudo e incapaz de enxergar além.



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